sexta-feira, 25 de março de 2011

Mariposa

"-Perdi a minha alma? - repetiu Aimee, quase perdendo seu costumeiro e perfeito autocontrole.

A médica concordou com a cabeça.

-Acho que sim. Provavelmente no começo da adolescência. Isso é mais comum do que você imagina. - A especialista era uma médica feiticeira, também conhecida como mediceira. Muito profissional, mostrou impaciência apenas ao ajustar o turbante. Aimee não conseguia descobrir se a mulher imensa e montanhosa era africana, libanesa ou, talvez, hindu, mas isso não tinha importância. Nada parecia ter importância. Tinha sido aquela apatia que levara Aimee até ali.
-Vamos dar uma olhada – sugeriu a mediceira, com delicadeza. - Levante-se, por favor, e fique de frente para o espelho.

Aimee ficou em pé, observando de um jeito automático a própria aparência no espelho que refletia o corpo inteiro: impecável, como sempre. Sabia que era uma jovem privilegiada, possuidora de um noivo rico e altamente desejado, um diploma da melhor faculdade, uma carreira em uma das melhores empresas do país, roupas de grife, um corpo magro como ditava a moda.

Por que, então, ela acordava todos os dias com uma profunda e dolorosa sensação de vazio?

Aimee ofegou. Do nada, viu sua imagem no espelho se transformar. Em seu eu refletido, toda a maquiagem cara, aplicada com destreza, havia desaparecido. A tintura do cabelo sumira. As roupas cuidadosamente combinadas, os acessórios, todos os artifícios com os quais Aimee mantinha uma imagem atraente feminina tinham sido removidos. Só restava a nudez...

Não. Ao observar, com os olhos arregalados, o rosto simétrico obediente em uma bela máscara, Aimee viu que o que sobrava no espelho não era um corpo nu, sem adornos. Em vez disso, era a silhueta pálida de um corpo sem substância, sem profundidade, sem essência. As extremidades pareciam bastante sólidas, mas, perto do que devia ser o centro, o corpo ficava translúcido, espectral.

Parecia não ter coração. Nem entranhas. E nem rosto.
- Sim, você perdeu sua alma – declarou a mediceira, tranquilamente. - Por favor, sente-se.

Aimee se sentou em uma cadeira de vime branca, contemplando as próprias mãos sobre os joelhos. Pareciam estar ambas ali, completas, com a aliança de diamante que ganhara do noivo e as unhas caprichadas. Porém, sentia um atordoamento quente ardendo no fundo dos olhos.

- Isso acontece com mais frequência em jovens mulheres plenamente socializadas como você. – A mediceira sentou-se atrás da mesa, sobre a qual havia a estatueta de uma deusa minoica de seios nus erguendo uma serpente em cada mão. - Aimee, quando você parou de sonhar durante a noite?

- Eu, hum... - Aimee olhou para cima, refletindo.
- A alma é responsável pelo sonhos. - explicou a mediceira. - Enquanto você dorme, ela voa livre e desenfreada, mas permanece amarrada ao seu coração por uma corda de prata, que a faz voltar. Deve ter acontecido alguma coisa que comprometeu a corda. Você sofreu abusos quando criança?

- Não. De jeito nenhum.

- Algum outro acontecimento traumático na sua infância?

- Não...

- Voltando a pergunta inicial: há quanto tempo você não sonha?

Aimee nunca tinha parado para pensar na questão dos sonhos.

- Hum, eu acho que... uns dez anos.

A mediceira assentiu.

- Portanto, você tinha treze anos, mais ou menos? Na puberdade, você foi submetida a pressões da sociedade?
Aimee piscou para ela.

-Não é assim com todo mundo?

-Até certo ponto, sim. Mas isso mudou você? Você esqueceu as coisas das quais gostava? Passou a se concentrar apenas em ser atraente, restringindo sua inteligência a um nível aceitável, e em agradar os garotos?

-É claro.

A mediceira assentiu e, sob o turbante, seu rosto escuro revelou alguma tristeza.

Aimee se enfureceu.

-Você está querendo dizer que a culpa é minha?

-Pela deusa! Não, querida. Você era uma criança. Alguém devia tê-la guiado, cuidado de você.

-Espere. - Um novo pensamento apagou a irritação de Aimee. - Tem certeza que isso aconteceu naquela época? Por que eu não percebi antes?
-Em geral, isso só se manifesta na idade adulta. Muitas adolescentes perdem a alma, e as pessoas só percebem anos depois.

-O que eu faço agora?

-Bem, há almas postiças a venda. Um especialista poderia fabricar uma para você conforme suas preferências em poesia, música, artes plásticas e assim por diante. Mas é impossível a prótese se igualar em qualidade a uma alma real, original. - A mediceira suspirou. - Então, se eu fosse você, tentaria reencontrar a sua própria alma."
Este é um trecho do conto Mariposa, de Nancy Springer, encontrado no livro Firebirds - Uma antologia de ficção fantástica. Quando eu o li pela primeira vez, no início de 2010, bem achei que meu nome podia ser Aimee, porque de resto tudo já estava igualzinho!

Agora, depois de mais de dois  anos de servidão, agradeço ao meu Dono por me ajudar, pouco a pouco, dia a dia, a redescobrir minha alma perdida... E eu mesma já não lembrava do quanto eu gostava dela!
                  com carinho
    
                 sua   nanda do PB
      

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